terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Jararaca no Paganismo Nativo: Katimalalo, Deusa Jararaca, Encantamentos e outros Folclores da Senhora Serpente pelo Brasil


Jararaca no Paganismo Nativo: Katimalalo, Deusa Jararaca, Encantamentos e outros Folclores da Senhora Serpente pelo Brasil
-Por: Iago Ferraz Wild

Um dos nomes de serpentes mais conhecidos pelas terras brasileiras é aquele destinado aos representantes do gênero Bothrops: Jararaca! 
A palavra vem do Tupi ya’raraka, que significa “cobra venenosa”. Entre tantas serpentes peçonhentas pelas matas brasileiras não é à toa que o adjetivo "venenosa" foi exaltado nestas. As espécies de jararaca estão ligadas à grande maioria dos acidentes ofídicos e mortes nas Américas. No Brasil, justamente a que tem a palavra "jararaca" não só no nome popular, mas também no científico (Bothrops jararaca) é uma das mais mencionadas nesses acidentes.
Para além dos casos médicos, é importante lembrar que de maneira geral o paganismo nativo das terras que hoje chamamos de Brasil é xamânico e que sob olhares xamânicos, geralmente venenos são associados à Medicina Espiritual e a grande força e poder do Grandes Espírito, do Mundo Espiritual, dos Deuses e etc.
Substâncias potencialmente enteógenas e/ou tóxicas, quando não manipuladas ritualisticamente ou medicinalmente, como ocorre com várias plantas (Datura, Sananga, plantas da Ayahuasca, etc.), cogumelos (Amanitas, Psilocybe, etc.) e até animais (Vacina do Sapo Kambô e etc.), davam ao ser vivo que as carregava a qualidade de ligantes entre nosso plano cotidiano e o plano espiritual de uma forma muito mais acessível à nossa natureza. Isso significa que toda a Criação possui seus elos entre os planos, mas por algum motivo, a energia daqueles que possuem a "Medicina do Veneno" abrem portais  mais acessíveis para nossa natureza humana, talvez pela capacidade das substâncias de destruir as barreiras de nossa mente que limitam nossa visão e sensibilidade de mundo.
Assim, apesar do veneno da jararaca não ser usado (não que a gente saiba, pois existiram e existem inúmeras tribos e povos com tradições religiosas únicas, misteriosas e desconhecidas) diretamente, ele certamente refletiu no entender religioso que algumas culturas desenvolveram sobre esses animais. Abaixo, listarei algumas dessas crenças, lembrando que nem todas elas são de um contexto pagão nativo, mas que possivelmente tem ele como origem e perduraram e se modificaram na sociedade pós-colonização.

Buhpu Magó - A Mãe das Jararacas
Buhpu Magó, que significa "Filha de Trovão", é uma Deusa dos antigos Desana-Wari Dihputiro Põrã. Ela e seu pai Buhpu, O Trovão, apareceram a partir da danças das primeiras nuvens de toda existência e por isso também são chamados de Imika Mahsã, que significa "Gente das Nuvens". As nuvens são suas malocas. 
Nekamtt era o líder da Gente das Estrelas, que eram rivais da Gente das Nuvens, mas mesmo assim acabou se apaixonando por Buhpu Magó. A Filha do Trovão se aproveitou da situação para destruir o seu grande rival.
Nekamtt estava encantado, pois diferente das outras mulheres daquele tempo, Buhpu Magó já tinha uma vagina. Nas outras, era necessário abrir uma.  Mas Buhpu Magó era muito mais perigosa que as outras. 
Sua vagina era habitada por aranhas, escorpiões, tocandiras e outros seres venenosos. Para completar, seu clitóris podia se transformar em um dente de jararaca. Mas esses ardis eram invisíveis para Nekamtt. Assim, sem que percebesse, cada vez que transavam Buhpu Magó fazia com que os seres venenosos sobre seu Monte Vênus picassem o amante e transformava seu clítoris em presa de víbora para envenenar seu falo. Buhpu Magó era tão poderosa que Nekamtt não conseguia sentir nenhum de seus ataques.
Entre suas armas sexuais e outros ardis, aos poucos foi adoecendo Nekamtt, que foi ficando amarelo, amassado e fraco. E assim ele morreu.
Abe, grande amigo e irmão de Nekamtt, decidiu se vingar. Também se juntou com Buhpu Magó, que pretendia mata-lo como fez com o outro. Mas Abe se preveniu de seus ardis e não fez sexo com ela e assim pode armar uma emboscada para matar Buhpu Magó. 
Sobre uma árvore, Abe atirou sobre Buhpu Magó um cacho de frutas encantado para que ficasse terrivelmente pesado. Quando foi atingida, seu corpo explodiu, mas o útero saiu pela vagina e foi preservado. De seu útero nasceram as ancestrais das jararacas, que fugiram de Abe e se espalharam.
As jararacas que existem hoje são descendentes das jararacas que surgiram nesse evento.
Hoje, nos igarapés, habitam as jararacas que nasceram de Diasó e Diakara, pois elas fugiram para os igarapés.
Nas beiras dos rios, habitam as jararacas que vieram de Moaweru Wuhu Aña ("jararaca de uaramã de sapo"), que fugiu de Abe para dentro das águas do rio.
Entre as raízes e as folhas caídas da floresta, habitam as jararacas que nasceram de Sumenugu Aña ("jararaca de raiz de uacum") e Gurabe Wuaro Aña ("jararaca de ânus grande").
Entre os galhos e copas das árvores, existem as jararacas que vieram de Anã Dihpuru ("cabeça de jararaca"), Umuanobã ("jararaca do alto"), e Wehko Aña (jararaca-papagaio).
Para que mais cobras não saíssem, Abe jogou o útero no rio, o útero lá se transformou numa arraia venenosa, que também fugiu. 

Os Encantamentos de Buhpu Magó
  • Para não ficar viúva:
As vezes mulheres possuem a Força de Buhpu Magó e seu veneno pode deixá-las viúvas. Por isso, ao se tornarem recém casadas ou antes dos casamentos, as mulheres recitavam "wahpewiõ bayimuye bayiriye" para isso não acontecer. 

  • Para auxiliar na cura de picada e envenenamento de serpentes (também uso para pedir proteção antes de entrar em lugares que possa ter cobras):

Invocar o nome das oito jararacas ancestrais: Diasó - Diakara -  Moaweru Wuhu Aña - Sumenugu Aña - Gurabe Wuaro Aña - Anã Dihpuru - Umuanobã - Wehko Aña.


O Vampiro Jararaca
Um dos vampiros brasileiros, seria a jararaca. Não me está claro se é uma entidade ou o próprio animal.
De acordo com o Dr. Bob Curran, em "Vampiros - Um Guia Sobre As Criaturas Que Espreitam à Noite", existem muitas lendas diferentes à respeito da origem das jararacas. Alguns dizem que são almas de falecidos, outros dizem que são demônios, e sabedorias mais primitivas dizem que é a própria aglutinação da escuridão da floresta que tomou vida, ou marcas deixadas pelos antigos deuses bebedores de sangue. 
Mas o que definiria a jararaca como um vampiro, seria a crendice de que, ao anoitecer, ela entraria nos lares em que existissem uma mãe amamentando e, sem ser percebida, entraria entre a mãe e o bebê e mamaria o leite, além de usar a calda para tampar a boca do neném e abafar seu choro. Seu poder sobrenatural faria com que a mãe não percebesse a situação.
Dia após dia, a jararaca poderia visitar a mãe e assim aos poucos o bebê se enfraqueceria e se tornaria uma criança problemática e fraca, ou morreria antes disso. 
Ocasionalmente, levanta o braço de homens adormecidos e também bebe um pouco de sangue. Quando se alimenta, sua saliva secreta substâncias que faz com que a pessoa acorde no dia seguinte atordoada e raivosa. Quando confrontada atira um veneno que gera loucura e pode levar a morte. 
Em zonas rurais do país, mulheres lactantes usam talismãs indígenas e/ou fazem orações antes da amamentação para se proteger. 
(Imagem do livro "Vampiros - Um Guia Sobre As Criaturas Que Espreitam à Noite" de uma Jararaca e uma criatura que o autor chama de "Lobisomen", embora provavelmente seja um equívoco linguístico.)

Na minha opinião, a lenda da jararaca bebedora de leite não tem origem nos povos nativos ("indígenas"), mas é uma interpretação folclórica do fato de comumente se encontrar serpentes nos currais pela manhã. É corriqueiro encontrar cobras quando se vai ordenhar as vacas, o que pode ter gerado o mito de que elas apreciam o leite.

Proteção contra serpentes
Não só para jararacas, acredita-se que carregar bezoar protege do ataque de serpentes, além do bezoar poder ser usado para ajudar na cura, por "sugar o veneno" ao ser encostado na ferida. 
Outros acreditam que carregar um dente de alho no bolso também evita que serpentes cruzem o seu caminho.
Mas vale lembrar que geralmente somos nós que cruzamos o caminho delas, por isso é preciso ter cautela e a ajuda médica não deve ser nunca dispensada nesses casos.

A Jararaca-Papagaio ou Papagaia
Existe um dito popular sobre essa jararaca (Bothriopsis bilineata) assim: 
"A papagaia quando pica sai de lado pra ver tombo".
Outra lenda diz que a papagaia pode seguir uma pessoa que picou até em casa. Pode as vezes se por à cantar como um galo e esse canto faz com que a pessoa envenenada morra imediatamente. É interessante que existem outras referências mitológicas e folclóricas pelo mundo que relacionam cobras aos galos. 

Katimalalo, a Serpente Espírito
O "Espírito da Serpente" é comum no mundo xamânico em várias partes do mundo. Muitas vezes é o Espírito Guia de Jornadas Xamânicas ou rituais como o da Ayahuasca.
Entre os Halíti, existe a crença numa Jararaca Espiritual chamada Katimalalo. Não se sabe muito sobre (pelo menos não encontrei bibliografia à respeito), mas parece que esta entidade é muito importante em sua cultura e espiritualidade. A arte tradicional desse povo usa desenhos no artesanato e nas tatuagens chamados "Zairiyatse", que são inspirados nos padrões do couro da jararaca (padrões chamados de "Matukulydios"). 
Os Zairiyatse podem ainda ser vistos em algumas cavernas. Uma delas ficava em uma cachoeira chamada Garganta da Jararaca, o que nos sugere mais ainda a importância deste animal e de Katimalalo. Infelizmente, a cachoeira da Garganta da Jararaca não existe mais pois virou uma usina hidroelétrica. Espero que a cultura dos Halíti e a força de Katimalalo sobreviva ao "progresso" capitalista.

Respeito ao Espírito da Serpente
Caso algum leitor seja leigo em relação aos mitos à respeito do mundo das serpentes, venho lembrar a importância de respeitarmos e preservarmos esses animais que são os representantes do Espírito da Jararaca, e os representantes do Espírito da Serpente como um todo. Por mais que muitos desses animais sejam perigosos, temos que entender que sendo cuidadosos estaremos seguros e que os invasores somos nós. Não machuque ou mate nenhuma serpente! É perigoso para você mesmo e um ato cruel, desrespeitoso, desonroso e  na maioria dos casos desnecessário, pois é extremamente improvável que sua sobrevivência ou dos seus familiares dependa da execução de uma serpente. Serpentes são importantes no ecossistema, controlando populações de roedores e insetos. Foram a mídia e a cultura popular sem consciência ambiental que as transformoram em vilãs. 
  • Grande parte das serpentes brasileiras não são peçonhentas. Saber identificar a diferença entre serpentes peçonhentas e não-peçonhentas é interessante para sua segurança e para saber como melhor proceder ao encontrar um animal. O grupo "Herpetologia Brasileira" no Facebook pode ser uma ferramenta interessante. 
  •  Se for picado, procure ajuda médica imediatamente. Se fizer isso provavelmente vai dar tudo certo. Se for possível, não esqueça a aparência do animal que te picou, para poder fornecer essas informações caso seja perguntado no tratamento. Acesse esse site para aprender mais sobre primeiros socorros.
  •  Se encontrar uma serpente em sua propriedade, afasta as crianças e animais. Não é recomendável tentar remover o animal sozinho se você não possui prática, mesmo sabendo que cobras só atacam se sentirem ameaçadas. O ideal é entrar em contato com o corpo de bombeiros, polícia ambiental, centro de zoonoses, ou órgãos do gêneros. Enquanto faz a ligação, tente não perder o animal de vista (guia mais elaborado no fim do texto). Se perceber que a pessoa que veio remover a cobra a matou ou pretende matá-la, denuncia! Se você se importa com a Natureza vai se responsabilizar pelo animal até ele ser devolvido à Natureza. Saiba neste site.
  • Proteja as serpentes, proteja a Natureza!!!
-Por: Iago Ferraz Wild
(Imagem: http://www.sbembrasil.org.br/files/v_sipem/PDFs/GT05/CC64691900730_A.pdf)
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Referências Bibliográficas