Uma Aventura Xamânica com o Menino Lobo
- Por: Iago Ferraz Wild (Puck)
“Chill, o abutre, conduz a noite incerta,
A que o morcego Mang ora liberta.
As manadas dormem no curral nesta hora,
Porque vagamos livres até a aurora.
Esta é a hora do orgulho e da força,
Das patas, das presas e das garras.
Ouçam o grito! Boa caçada para todos
Os que respeitam a Lei do Jângal."
- Canção noturna do Jângal
Acredito que a maioria conheça ou já tenha ouvido falar em 'Mowgli (ou Mogli), o Menino Lobo", talvez pelas animações e pela mais recente adaptação para o cinema, ou o próprio "Livro da Selva" (The Jungle Book), que na versão que eu li (que traz apenas os contos que envolvem o menino) e venho escrever sobre, a palavra "selva" ou "jungle" são substituídas por "Jângal". Jângal vem do sânscrito jangala, se referindo à uma vegetação típica da Índia, parecida com o que chamaríamos genericamente de Selva.
"Boa sorte te acompanhe, ó Chefe dos Lobos; e boa caça e dentes rijos tenham teus nobres filhos, e que nunca se esqueçam dos famintos deste mundo!" - Diz Tabaqui, o Chacal, que costuma se alimentar dos restos da caça dos lobos.
O autor Rudyard Kipling publicous as histórias de Mowgli em dois livros, mas compilados em um só na edição que adquiri, "Histórias de Mowgli, do Livro do Jângal", da Editora Martin Claret, edição de bolso, traduzida por Casemiro Linarth e com uma capa magnificamente linda. Mas vamos ao que interessa!
"Ler este livro é aprender a ser mais humano; é entender como são as inter-relações dos homens com as lições dadas pela Natureza."
- Luiz Carlos Gabriel, professor, jornalista e participante do Movimento Escoteiro no Brasil.
Não é difícil imaginar como a história de um menino criado por lobos, ensinado por um urso, uma pantera e uma cobra e crescido em meio à selva pode ser observada e absorvida sobre um olhar pagão, ainda mais se considerarmos que a obra literária é muito diferente e muito mais profunda que as adaptações da Disney.
Alguns pontos que mostram diferenças que ajudam a entender a complexidade dos contos sem estragar a emoção da leitura para aqueles que ainda não leram, são o fato de Mowgli não ser uma presa vulnerável e temente ao maligno tigre Shere Kan, mas um corajoso e temível oponente; Bagheera, a pantera, na verdade ser uma fêmea que apesar de maternal, é temida e implacável; Baloo, ao invés de um urso preguiçoso e malandro, é um professor rígido, sério e comprometido; Kaa, a cobra, embora ardilosa, mais do que um personagem secundário, é uma grande companheira do menino e que se mostra muito importante em vários momentos; e por fim, os lobos, que tem importância maior no livro do que nas adaptações e nem sempre se mostram favoráveis ao menino, com exceção daqueles que fazem parte de sua família e sempre são leais.
É importante ter essas diferenças em mente, pois a representação adaptada e limitada destes personagens nas telinhas não permitem que se perceba o profundo papel de professores e da transferência de suas Medicinas Xamânicas para o menino Mowgli.
As Medicinas
Grosso modo, o uso popular e contemporâneo do termo "Medicina Animal", refere-se aos ensinamentos, mensagens, energias e aspectos de cada arquétipo animal espiritual, bem como suas capacidades de nos curar espiritual e emocionalmente, nos mentorar e guiar no sentido da evolução, superação e realização, além de nos perfurar com suas garras e presas quando for necessário para nosso aprendizado. Nos contos de Mowgli, o filhote de homem é literalmente guiado e ensinado por animais, e tendo sido proposital da parte do autor ou não, esses ensinamentos trazem nuances de suas medicinas sagradas e simbolismos.
Bagheera, a Pantera, em seu comportamento de proteção e cuidado intensos perante o menino evoca a força da maternidade felina com seus filhotes, que podemos observar na natureza. Evoca ainda, a qualidade do instinto, pois desde antes de conhecer o menino já oferecera um touro como presente para convencer os companheiros animais à aceitá-lo no Jângal. Bagheera sempre ensinou a cautela ao menino, ao mesmo tempo que o ensinava a ser corajoso, implacável e astuto, qualidades que podemos encontrar na medicina e simbologia desse animal e no seu comportamento na Natureza. A paciência e calma também são marcantes, embora seja uma das figuras mais temidas e respeitadas.
Baloo, o Urso, é o personagem que ao meu ver, junto com a cobra Kaa, mas expõe claramente a medicina do animal que representa. Sendo um dos animais totêmicos mais antigos em várias culturas pelo mundo, o Urso é um grande protetor e um grande sábio, mas que exige extremo respeito e se coloca com rigidez e firmeza, sendo claro que a mesma força que ele tem para proteger, tem para atacar com suas patas fortes e garrar afiadas, e que a mesma sabedoria que tem para ensinar, tem para caçar. Essas características são muito claras no amado Baloo, o responsável por tutorar o menino lobo fazendo com que ele aprenda profundamente a Lei do Jângal em todas as suas especificidades, além de aprender os diferentes 'idiomas' e conhecer as histórias sobre os animais e lugares. Embora seja um dos grandes protetores do menino, Baloo exige firmemente que ele aprenda seus ensinamentos e se posiciona de forma dura e agressiva quando ele não corresponde a essas expectativas, mesmo que precise usar suas garras. Enquanto Bagheera mostra uma grande sabedoria sobre o cotidiano, Baloo mostra uma grande sabedoria sobre a selva e sobre a vida.
Kaa, a Cobra Píton, é um dos mais temidos seres do Jângal, seja pelo seu incrível tamanho e abraço mortal, ou seja por ser encantadora e ardilosa a ponto de atrair sua presa para seu abraço de boa vontade, através de seu poder de fascinação, uma hipnose fantástica. Esse respeito é marcante na medicina da Grande Cobra, bem como o potencial de transformação e a grande sabedoria, também percebidas em Kaa. Além das transformações óbvias em suas mudanças de pele, devido aos conselhos e atitudes frutos de seu vasto conhecimento, Kaa é o principio motivador de grandes transformações e passagens na vida de Mowgli e de seu meio, exercendo o mesmo papel que o Espírito da Cobra exerce em nossas vidas quando chamado.
![War Wolf.gif](https://tibiawiki.com.br/images/a/a4/War_Wolf.gif)
Os lobos, em um sentido que imagino que você só conseguirá desfrutar totalmente através da leitura dos contos, trazem o sentido da lealdade, da importância do clã e do companheirismo, ao mesmo tempo que representam um dos princípios mais agressivos da floresta, seja como caçadores ou seja entre eles próprios, através de observações que o autor fez certamente estudando o comportamento desses animais na Natureza, e assim retratando seu espírito de forma precisa e poética. O próprio Mowgli, em sua personalidade e comportamento, naturalmente mostra muito da Medicina do Lobo, como a inteligência, a lealdade e a destreza.
Hathi, o Eefante, traz de forma linda a sabedoria e a carga ancestral do ser sagrado que é o Elefante. Não por acaso, ele é o Senhor do Jângal, e por todos respeitado.
"Hathi nunca faz as coisas antes de chegar a hora, e este é um dos motivos por que sua vida é tao longa."
Outros ensinamentos
As relações e os dialogos entre os animais, entre os quais eu incluo Mowgli, o filhote de homem e menino lobo, dizem muita coisa sobre as leis da natureza e sobre valores importantes para o funcionamento do mundo. Um dos pontos fortes é a gratidão, vista quando Mowgli não se alimenta de touros, por ter sua vida sido comprada por um; ou na passagem em que Bagherra compromete-se em deixar parte de sua caça para Chil, o Abutre, em gratidão por sua ajuda. Assim, comportamentos selvagens e valores humanos se unem criando uma história rica de ensinamentos, desde travessuras com Ikki, o Porco Espinho, até o enfrentamento épico com Shere Kan, o Tigre Manco.
Ainda temos o Povo Macaco que, ao meu ver, traz grandes críticas ao próprio comportamento humano. Ao invés desses personagens trazerem medicinas e sabedorias correspondentes ao animal, os macacos, chamados de Bandar-log, tem uma imagem muito negativa (enquanto lia eu pensava: que droga de bicho chato!) e são detestados e desprezados por todos os outros seres da selva. Isso se dá, pois os Bandar-log estão sempre gritando, exercendo uma necessidade infantil de serem percebidos, atacando os outros sem motivo, destruindo tudo, brigando entre si e se intitulando os seres mais sábios e importantes do Jângal, além de serem os únicos a não seguirem a Lei da Selva, ou Lei do Jângal. Pra mim, nem precisaria saber que os macaquinhos são, entre os personagens, os mais próximos geneticamente da raça humana para entender a descrição deles como uma critica ao que se tornou a humanidade, a relação dela com os outros seres e o afastamento deles como consequência. Nos associar aos Bandar-log é um bom jeito de perceber o quanto soa patético nosso comportamento viciado por atenção e a ilusão de superioridade perante o mundo. Após a leitura, quando vejo escândalos por futebol, plateias para brigas de colégio, lixeiras depredadas e especismos ridículos, acho impossível não ver as pessoas como Baldar-logs e seu culto pela barbárie e a desordem.
"Quatro coisas nunca estão contentes,
nunca estão saciadas desde que o Orvalho começou:
a boca de Jacala, o crocodilo; o papo do Abutre;
As mãos dos Macacos e os Olhos dos Homens."
- Provérbio do Jângal
No mais, recomendo de todo coração a leitura dos Contos de Mowgli para todos, principalmente para os pagãos. Os valores são admiráveis e a história por si só é bonita, cativante e surpreendente, sendo com certeza um dos livros que lerei para meus filhos.
Texto de Iago Ferraz Wild (Puck)- Gruta do Bardo.
Lei da Selva para os Lobos
"Agora, esta é a lei da selva, tão antiga e tão verdadeira como o céu que se eleva,
E o lobo que a guardará prosperará, mas o lobo que o quebrará morrerá.
Como o cipó que circunda o tronco da árvore, a lei corre para futuro e para passado;
A força da alcateia é o lobo, e a força do lobo é o alcateia.
Lave-se diariamente da ponta do nariz à ponta da cauda; beba em abundância, mas nunca em demasia;
E lembre-se que a noite é para caça e não se esqueça de que o dia é para dormir.
O chacal pode seguir o tigre, mas, filhote de lobo, quando seus bigodes são crescerem,
Lembre-se que o lobo é um caçador - saia e obtenha sua comida própria.
Mantenha a paz com os senhores da selva, o tigre, a pantera, o urso;
E não pertube Hathi, o Silencioso e não zombe do javali em sua toca.
Quando duas alcateias cruzam sua trilha e pretendem permanecer,
Deite-se até os líderes terem conversado; Pode ser que as palavras justas tudo resolvam.
Quando você lutar com um lobo da alcateia, você deve lutar contra ele sozinho e longe,
Para que outros não participem da briga e o alcateia seja diminuído pela guerra.
O covil do lobo é seu refúgio, e onde ele o fez sua casa,
Nem mesmo o lobo chefe pode entrar, nem mesmo o Conselho pode vir se não forem convidados.
O covil do lobo é seu refúgio, mas se estiver muito em vista,
O conselho deve enviar-lhe uma mensagem, e então ele deve mudar-se novamente.
Se você matar antes da meia-noite, fique em silêncio e não acorde o bosque com seu uivo,
Para que não assustes os cervos das colheitas deixem os teus lobos irmãos de barriga vazia.
Poderás matar para si mesmo, e para os teus companheiros, e para os teus filhotes que precisam;
Mas não mate pelo prazer de matar e lembre-se sete vezes de nunca matar o homem.
Se tomar a caça de alguém mais fraco, não devore tudo em seu orgulho,
A Lei da Alcateia protege o mais humilde; então deixe-lhe a cabeça e a pele.
A matança da alcateia é a carne da alcateia. Você deve comer onde está;
E ninguém pode levar essa carne para o seu covil, ou poderá perder a vida.
A matança do lobo é a carne do lobo. Ele pode fazer o que quiser e levar para onde quiser,
Mas, até que ele tenha dado permissão, a alcateia não pode comer daquela matança.
Direito do Covil é um direito de Mãe. Ela pode reivindicar
Um lance de cada matança pra seus filhotes, e ninguém pode negar.
É direito do lobinho de um ano
De toda alcateia ele pode reivindicar
Depois de cheio uma parte do alimento; e nenhum pode recusá-lo da mesma forma.
Direito do Covil é um direito de Pai, caçar sozinho para si próprio e para os seus;
Ele é liberado de todas as chamadas da alcateia. Ele é julgado apenas pelo Conselho.
Por sua idade e sua astúcia, por suas garras e por seu peso
Em tudo o que a lei deixa a palavra aberta, a lei do Chefe é lei.
Agora, estas são as leis da selva, e muitos e poderosos são elas;
Mas a cabeça e o casco da lei e o casco e a anca são - Obedeça! "
-Rudyard Kipling (1865-1936)